domingo, 6 de setembro de 2009

Inimigos Públicos (Resenha)


John Dillinger foi assassinado numa tocaia armada por agentes do FBI quando saia do Cine Biograph. Isto não é spoiler, é história! E qualquer um minimamente informado que Michael Mann a contaria em Inimigos Públicos (Public Enemies, 2009) sabe que ele se ateria aos fatos, com o rigor aos detalhes que vem caracterizando sua carreira.
Não há créditos de abertura em seus filmes, e Mann não apenas é entusiasta, mas um dos poucos que usam os recursos do cinema digital com autoridade: a câmera ágil mas não nervosa ou picotada com centenas e cansativos cortes, uma fotografia fascinante por minimalista. Tudo girando para criar uma experiência de imersão, hoje praticamente banida por deficiência dos realizadores, do cinema que não vê problemas de ser comercial, e que pode sim ser um produto refinado.
Uma constante que vem requintando a cada novo filme, o profissionalismo e ética no trabalho, seja ele qual for. Em Fogo Contra Fogo (Heat, 1995), Neil MacCuley (Robert DeNiro) dispensa um assecla por ser um desleixado, atira a esmo, imperdoável; o personagem de Al Pacino é descrito assim (cito de memória): "está no terceiro casamento, sabe o que isso significa, que nunca vai pra casa, que está sempre trabalhando, no escritório numa campana...". A família é sempre sacrificada, em Ali (Ali, 2001) é o fator (além da traição) para o divórcio Muhammed e Belina, que não queria que disputasse a luta com George Foreman no Zaire (hoje Congo). O policial Fanning (Mark Ruffalo) de Colateral (Collateral, 2004), ele próprio trabalhando na alta madrugada não hesita em ligar para um superior e arrastá-lo de casa para um necrotério.
Só que agora temos duas evoluções. Primeiro, se anteriormente os personagens estão sobrecarregados, estressados, pelo exigências da excelência absurda para o trabalho, John Dillinger se diverte com gosto, não confundir com displicência. Confirma-se no planejamento dos roubos de bancos, pelas roupas finas, a postura e fala ousada e levemente insolente. Tal excitação volta-se contra ele na metade da trama, quando descobre o que está ultrapassado, um novo tipo de criminoso começa a agir com a integração das quadrilhas por todo os Estados Unidos. Dillinger passa a ser um anátema por não só atrair atenção indesejada na caçada das forças policiais para prendê-lo quando, surpreso percebe que um balofo numa mesa com telefone anotando apostas na liga nacional de beisebol pode render muito mais que ele.
O segundo ponto revigorante é que mantendo a busca por um realismo, Mann também atiça o imaginário. O ar solene evoca O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972), a violência os tradicionais filmes de gângster como Inimigo Público (Public Enemy, 1931), a ação dos homens da lei emula Os Intocáveis (The Untochables, 1987); e no ponto alto o próprio cinema; construtor de arquétipos, no seu personagem que entende o magnetismo do criminoso-heroi, não só usando a seu favor como medindo sua popularidade. Suas idas ao cinema não são só entretenimento, mas igualmente pesquisa de mercado. É patente sua sastifação.


Torna melhor o contraste com seus antagonistas um palpável, Melvin Purvis, por um sempre admirável Christian Bale; e outro imaterial no qual J. Edgar Hoover, (Billy Crudup) idealizador e diretor-chefe do FBI por quase 40 anos, acredita encarnar. Esse choque corroe o sisudo agente Purvis. Ele não acredita que está numa cruzada contra o crime ou em missão para fundar a primeira organização federal, que utiliza métodos modernos de investigação, é apenas um homem com um trabalho a fazer. Hoover sim, e quem conhece a biografia deste personagem sabe o quão perigosos homens assim podem ser. Fina ironia, e já antecipando o que viria na história americana, o filme não esconde os métodos deste ser sinistro; ao sair duma comissão no congresso, articula para difamar os senadores contrários as suas posições, ou sendo explícito que não importa através de quais meios, John Dillinger e associados deviam ser detidos.
Então de um lado temos um escroque com um distintivo e todo o peso da lei, e do outro um bandido galante e cavalheiro. Clichê? Só quando malfeito, Não é o caso aqui. Ainda melhor é que o segundo é que sem esforço angaria popularidade, o outro só pelo achaque.
Pena que no momento que escrevo esta resenha, Inimigos Públicos esteja saindo de cartaz nos cinemas, é desses filmes que perdem quando não vistos na tela grande. Seja pelos imensos close-ups que tosam os histrionismo e cacoetes forçados de qualquer atuação, e pelo magnífico ato final no cerco à Dillinger, culminando na última cena com sua amante, Billie Frechette (Marion Cotillard) sozinha no plano. Soberbo.
Eis logo abaixo a principal canção interpretada pela cantora Diana Krall, em pequena participação, depois o trailer. Se possível corra para próxima sessão disponível, ou esteja atento quanto chegar as locadoras, falando por mim, mal posso esperar para voltar a este microcosmo.




domingo, 23 de agosto de 2009

Hors Concours


É estranho, não estão entre aqueles que considero os melhores filmes já feitos, e nem sequer numa lista (Top 5? Com certeza não, talvez num 50) dos meus favoritos. Contundo tenho uma relação especial com as adaptações dos livros do inglês Nick Hornby Um Grande Garoto (About a Boy, 2002) e Alta Fidelidade (High Fidelity, 2000).
Para ser sincero nunca me identifiquei tanto com um personagem quanto com o "garoto adulto" Marcus (Nicholas Hoult); o verdadeiro protagonista, não o "adulto garoto" Will, papel de Hugh Grant. Resumindo: Will é um sacana que graças à herança de direitos autorais de músicas do pai usa seu tempo da mais maneira frívola imaginável, um dia percebe que as mulheres mais vulneráveis são as divorciadas e com filhos; Marcus descobre isto, só que ainda assim empurra a mãe para o sujeito, porque pateticamente é o único adulto, além do pai ausente que conhece. Não se vê muitas comédias românticas tão naturalmente bem escritas e sem ser baixo astral, falar de temas pesados como solidão, incapacidade de levar uma vida social, tristeza, suicídio. Na metade Marcus nos dá a melhor definição de amor já feita em celulóide, "I wanna be with her more, I wanna be with her all the time, and I wanna tell her things I don't even tell you or mum. And I don't want her to have another boyfriend. I suppose if I could have all those things, I wouldn't really mind if I touched her or not".
Veja aqui uma cena:



Alta Fidelidade é mais simples, Rob Gordon (John Cusack) leva um fora da namorada. Ela é uma advogada que está subindo na carreira, ele um coitado na bancarrota, dono de uma loja de LP's de vinil (você pode medir a seriedade de qualquer articulista cultural pela maneira como aborda a "volta triunfante do vinil", se insistir nesta cascata, deixe o cara falando ou escrevendo para outros pobres perdidos). É o gatilho para rememorar os cinco maiores foras que levou da vida, as cinco melhores faixas de aberturas dos discos, as cinco quaisquer mais coisas que o momento suscitar.
Desta vez tenho em comum o mesmo olhar ou a falta dele de Rob sobre a vida, amor e música. A frase de abertura é genial: "O que veio primeiro? A música ou a tristeza? Todos preocupados com crianças com armas, ou vendo filmes violentos, e toda espécie de cultura da violência, que os cerca. Ninguém parece preocupado com garotos ouvindo milhares, verdadeiramente milhares de músicas sobre separações, rejeição, dor, tristeza e perda. Eu ouço pop music porque estou triste ou sou tristre porque ouço pop music?", um dilema shakesperiano.
Pausa para um top 5 de músicas para este post (criteriosamente não utilizo nenhuma música das trilhas sonoras dos filmes). Do quinto para o primeiro:











O fecho de ouro é o diretor Stephen Frears, seja lá o que faça não consigo achar ruim seu trabalho, e para minha sorte ele tem colaborado: Minha Adorável Lavanderia (My Beautiful Laundrette, 1985), Ligações Perigosas (Dangerous Liaisons, 1988), Os Imorais (The Grifters,1990) (primeira parceiria com Cusack), Coisas Belas e Sujas (Dirty Pretty Things, 2002) e A Rainha (The Queen, 2006); ou os obscuros, modestos e controversos Heroi por Acidente (Hero, 1992), A Grande Família (The Snapper, 1993), Terra das Paixões (The Hi-Lo Country, 1998) e A Van (The Van, 1996).
Para quem chegou até aqui dois mimos. O primeiro tem que ser resgatado até a madrugada deste domingo para segunda, Alta Fidelidade será exibido na Sessão de Gala da REDE GLOBO. O outro é uma rara confidência pessoal do signatário. Há duas cenas que aconteceram muito semelhantes comigo. Para bem ou para o mal, nenhuma delas com Catherine Zeta-Jones (veja o filme, e veja que não estou sendo irônico aqui); para quem estiver disposto à caçada são dois diálogos, um de Rob com Ian "Ray" Raymond (Tim Robbins), o seguinte com Laura (Iben Hjejle).
Não estou envergonhado com esta confissão, com certeza você meu caro leitor também tem as suas.
Despeço-me com este trecho, ouça estas palavras de sabedoria:


terça-feira, 18 de agosto de 2009

Era uma vez...

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...quando o recluso ogro Alexandre recebeu um convite para sair de sua caverna e ir aos festejos de fim de ano das meninas Rute e Sara. O convite não era fora de propósito pois o ser disforme era parente delas, porém inusitado: dias antes numa taverna ele declarara que seu objetivo na vida era construir um bunker anti-humanidade e das adeus a tudo (uma brincadeira, por certo; jamais que ele conseguiria juntar a soma necessária). Aceitou, era genuíno o apreço pela infantas e o respeito pelos pais delas. Na data marcada estava lá, se divertiu e coroou a noite num banquente com pastel de frango e catupiry. O ogro continuou sua vida solitária, mas guardava feliz a lembrança daquela noite.


As meninas estavam muito bonitas, Rute de bailarina e Sara de sereia, a apresentação bem ensaiada, e o som e músicas apreciáveis. Gostei muito de ter ido, mas uma coisa me incomodou. O tema da festa era Peter Pan, e a mestre de cerimônias, que acredito que seja uma das pedagogas da escola, insistia muito na idéia da manutenção da ingenuidade, que devermos sempre nos mantermos crianças, fugindo para a Terra do Nunca pois o mundo fora é perigoso e corrompido.
Discordo frontalmente desta abordagem, e acho que J. M. Barrie, criador da peça original também, não custa lembrar que no final, os garotos perdidos voltam para Londres, Wendy abandona Peter para deixar de ser criança e ter uma vida plena. O menino que não queria crescer é apaixonante, porém em sua candura que acha que um dar um beijo é a troca de um dedal de costura; mimado, interessado apenas em suas brincadeiras; impertinente ao limite, é um ser incompleto, triste. A premissa de Hook - a Volta do Capitão Gancho (Hook, 1991) de Steven Spielberg, onde Pan (Robin Williams) deixa a Terra do Nunca, cresce, tem filhos, e um emprego chato é ótima, pena que mal compreendida. Sim, no final ele reaprende a voar, relembra os jogos de rima, gracejos e divertimentos, mas o que se quer demonstrar é a busca do equilíbrio, foi a urgência adulta de resgatar os filhos, inclusive afetuosamente, que o faz recordar tudo.
Noutro filme, o magnífico Em Busca da Terra do Nunca (Finding Neverland, 2004); que dramatiza o encontro real de Barrie com a família Llewelyn Davies, inspiração para a obra máxima, há uma diálogo-chave do caçula Peter Davies (Freddie Highmore) com o escritor (interpretado por Johnny Depp); aos prantos, mais por raiva do que por tristeza exige saber o quão delicada e grave é a situação. Sem subterfúgios ou condescendência.
Lamentável o lugar-comum que as crianças são incapazes para lidar com os problemas da vida. O que elas não têm é o bagagem intelectual para decupar-los, mas até é bem possível que um adulto também não, todavia o que assimila pode ser tão sofisticado, embora diferente. Sendo a tarefa dos pais e família prepará-las para enfrentar estas adversidades.
Sinal de como estamos falhando nisto é ver como os contos de fadas, quando não ignorados, são deturpados. A causa pode ser atribuída à Walt Disney. Causa não culpa; Disney não se propôs a educar as crianças, mas sim a divertí-las. Gênio buscou o melhor material para trabalhar nas suas criações, e obstinado trabalhou como um louco, quase faliu em várias ocasiões para virar um padrão e um mito. Que pecado cometeu ele se anos mais tarde aparece uma Xuxa...
Infelizmente acabou preponderando a mística do final feliz, todos os vilões punidos, a princesa encontra se valente príncipe. É razoável poupar de detalhes como por exemplo que a rainha má de Branca de Neve come o fígado e pulmões que o caçador lhe traz acreditando ser os da donzela (aliás ela morre dançando em sapatos em brasa); a pequena sereia Ariel se suicida ao ver o casamento de Eric com outra mulher; As irmãs de Cinderela tem os olhos arrancados por pássaros; o Pequeno Polegar tapea um monstro para degolar sete meninas. Há um conto dos Irmãos Grimm chamado "como crianças brincavam de açougueiro umas com as outras". Em muitos aspectos, nos dias de hoje tais informações só tem uma vertente macabra.
(Importante: tais histórias tinham um propósito admonitório claro, e sem firulas, tanto quanto agora o mundo é um lugar extremamente perigoso, o que é diferente é a concepção de infância que só surgiu no século XIX, e até o início do século XX um programa matinal da família poderia ser as execuções públicas de condenados)
O dilema é quando se sacrifica elementos que tornam a trama mais poderosa e rica. Que um conto de fadas pode ser assustador e denso, tal como O Labirinto do Fauno (El Laberinto Del Fauno, 2006). Um triunfo que junta a guerra civil espanhola e o melhor da tradição literária. O sinistro Capitão Vidal (Sergi López) do exército franquista é tão ameaçador quanto o devorador de crianças com olhos nas palmas das mãos.


E espetacular a forma como o diretor, roteirista e produtor Guillermo Del Toro utiliza os símbolos e regras dos contos de fadas. O Fauno (Doug Jones) alerta Ofélia (Ivana Baqueno) que não deve comer nada quando estiver no submundo. É recorrente avisos como esses como nas lendas grega das sementes de romã do Hades dadas a Perséfone, nem sempre o tabu tinha efeitos nefastos, embora sempre arriscados, ainda os gregos falavam das maçãs douradas do jardim Hespérides, os vikings de outras maçãs também douradas cultivadas por Iduna, que davam imortalidade as quem as comesse. Outra o uso da raiz de mandrágora como remédio. Mais uma a própria jornada de Ofélia nas três tarefas dadas pelo Fauno para regressar ao seu reino perdido.
Tudo coroado pelo tocante final, que prefiro não me estender. Basta saber que contra o mal devemos revidar com coragem, bondade e abnegação.
Seu filho não captará todas estas referência, o seu papel é ensinar-las. Boa sorte, ele será uma pessoa melhor, e lhe será eternamente grato por isso.

NOTA:
  • Del Toro tem outro filme que merece atenção, A Espinha do Diabo (El Espinazo del Diablo, 2001), e a série HellBoy. Não possuem a mesma profundidade, mas são diversão garantida.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Até adamantium pode vergar

Contemporâneos da mesma década do século XIX, cinema e quadrinhos surgiram como diversão barata. Coincidentemente, primeiras experiências de mescla-los foram em suas épocas de ouro, nos anos de 1940. Os seriados de Batman, Shazam (Capitão Marvel), Flash Gordon, Fu Manchu, Capitão América, Superman. Uma e outra arte se retroalimentou, Orson Wells, fã confesso do Spirit , inspirou-se nos grandes planos e jogos de luzes espetaculares do traço de Will Eisner, para o Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). E donde veio as referências de Eisner? Dos filmes do expressionismo alemão: O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920), Os Crimes do Dr. Marbuse (Das testament des Dr. Mabuse, 1933), M - O Vampiro de Dusseldorf (M, 1931), e outros.
A parceria foi sabotada pelo ataque inclemente da onda de puritanismo rasteiro dos anos 1950. Vieram o código Hayes para Hollywood (entre outras coisas; ainda que casados, haveria duas camas no quarto dos conjugues, separados por um móvel; beijos só de alguns segundos, nunca com língua à mostra); e o Comics Code Authority nas editoras, sobre isso basta dizer que é o grande responsável pela enxurrada de histórias imbecializantes que serviram de mote para o seriado camp de Batman (aquele desastre protagonizado por Adam West e Burt Ward). Tolhe-se qualquer menção de conflito, angústia e sexualidade (embora esdrúxulamente só reforçou a suposta homosexualidade da dupla dinâmica). As empresas especializadas nos quadrinhos de terror, vertente mais interessante na época, faliram. Não se pode esquecer do comitê de Atividades Antiamericanas presidido pelo senador (e biruta) Joseph McCathy, que na sua paronóia anticomunista perseguiu o quanto pode, todos os artistas que conseguiu.
O divórcio durou os 40 anos seguintes, com tentativas de aproximação, destaco três, discutíveis se as melhores, porém acredito significativas do período, Barbarella (idem, 1968), Superman (idem, 1978) e Batman (idem, 1989). A rigor, nenhum deles têm legítimas conexões com os quadrinhos que os inspiraram. Barbarella é muito mais um retrato dos anos 1960's e veículo para sua estrela, Jane Fonda. O filme de Richard Donner transpõe um ícone planetário para uma plataforma específica; sua incrível bilheteria na época com certeza não era composta pelos os leitores do gibi do kryptoniano, não obstante, o reconheciam e sabiam de sua história. Tim Burton também se serviu disso, mas com uma proposta oposta: Batman, o filme, é a visão particular de um criador sobre o ídolo. Gotham City não é uma metrópole urbana, está mais para uma gigantesca vila gótica assombrada por bizarros malfeitores (estranho que poucos realmente ameaçadores), com um guardião inadequado. E manipulado, o assassino dos pais de Bruce Wayne não é o Coringa. O clima de fábula se acirra na sequência: Batman, o Retorno (Batman Returns, 1992) com as origens do Pinguim, abandonado num cesto de vime; e a da Mulher-Gato, que ressuscita duma queda ao ser lambida por gatos (quem sabe são gatos radiotivos?).
O que temos em comum aqui é que nenhum destes filmes usou a grande contribuição que os quadrinhos podem oferecer. Por favor, não estou me referindo a obviedade de seus painéis servirem como storyboards já prontos, falo do que é mais precioso: o roteiro. Importante é não confundir com enredo, nisso basta uma linha: vilão sequestra a mocinha, heroí parte para resgaste, luta, vilão preso, casal reunido, fim. A construção dos personagens, como interagem uns com os outros, suas marcas pessoais, motivações, fantasmas e dramas pessoais, um manancial valioso. Muitos quadrinhos têm décadas de erros e acertos sobre o que faz determinado personagem. Se o Superman matasse a torto e a direito, ou o Batman só mais um riquinho sem angústias que nas horas vagas tem como hobby combater o crime; nunca alcançariam a mística que possuem.
Credito uma das falhas que prejudicou Superman Returns (idem, 2006) precisamente a escolha de ser uma adaptação não da HQ, e sim do filme dos anos 1970's. A Fortaleza da Solidão formada por cristais é um anacronismo brega, a redação do Planeta Diário parece saída de uma sitcom sem-graça. E um Lex Luthor panaca, que casa com uma velhota moribunda para fingir estar regenerado não funciona. Ao menos Kevin Spacey não carregou na estultice, no cerco ao Superman na ilha artificial tivemos lampejos da ira contra o heroi.
A desfiguração de personagens rende casos estranhos como as adaptações de obras do gênio Alan Moore. Sem reducionismo ou condescendência Moore está para os quadrinhos como Shakespeare está para a literatura, isso se depois de ler suas obras ainda acreditar que haja distinção entre elas. Por isso cada tentativa nas telas vem acompanhada de frustração, talvez o único cineasta com estofo para tarefa tenha sido Stanley Kubrick. Constatine (idem, 2005) e V de Vingança (V for Vendetta, 2005) são até bons filmes, para quem não leu as histórias originais. Para A Liga Extraordinária ( The League of Extraordinary Gentlemen, 2003), O Monstro do Pantâno (Swamp Thing, 1982) (dirigido por Wes Craven ??) e o recente Watchmen (idem 2009) o desprezo é pouco.
Por sua vez não defendo a fidelização extrema. Sin City (idem, 2005) e 300 (idem, 2005) no que pesem suas direções de arte e visuais arrebatadores, são meras traduções tridimensionais das obras originais, quiçá não por acaso que são bem rasas na trama. Não há lá muita profundidade em Marv, ou no Assassino Amarelo. Leônidas e a Rainha Gorgo são os únicos com alguma densidade no filme de Zack Snider, difícil que as pessoas sequer lembrem o nome de quem Rodrigo Santoro interpreta.
É chilique se importar que o Homem-Aranha no cinema produza sua teia orgânicamente, em vez de usar os tradicionais lançadores. É necessário entender que com isso o diretor pode usar o tempo para desenvolver um outro aspecto, como por exemplo a relação com o tio Ben. O cuidado é para não buscar o porquê dos lançadores: Peter Parker é um cientista, e criou um produto que uma vez patenteado poderia lhe render milhões, mas se fizer isto sua identidade secreta estará em perigo e porá em risco seus entes queridos; como está sempre em penúria financeira só aprofunda seus dilemas.
Uma das felizes transgressões é X-Men (idem, 200). O plot já tem uma conexão com a atualidade ao lidar com genética, preconceito e racismo. Bryan Singer, um dos diretores mais inteligentes do cinema americano (o que só acentua a decepção no Superman, o Retorno) fincou o pé ainda mais na realidade e construiu um filme de ficção-científica de fôlego. O embate Xavier-Magneto não tem nada da (maravilhosa) bobagem à la James Bond, lunático quer dominar o mundo, e um agente esperto (Wolverine), junto com sua turminha maneira não deixa.
Por fim a percepção das diferentes dinâmicas entre as mídias. Existe algo que na minha petulância característica chamo de lei Alexandre Melo - Bryan Singer para adaptações cinematográficas; seu enunciado diz: Não importa o quão sensacional seja o design nos quadrinhos, alguém de carne e osso vestido assim parecerá ridículo, e.g.: o Flash. Singer fez os X-Men abandonar os colantes, vestindo-os com couro preto. Christopher Nolan em Batman Begins (idem, 2005) "intuitivamente" estava atento à norma e na impossibilidade de contorná-la (um homem-morcego de sobretudo?), adapto-a, primeiro dando uma função específica para cada aspecto do uniforme, seja nas orelhas (microfones omnidirecionais) ou nas ridículas barbatanas nas luvas (rígidas e úteis nas lutas corpo-a-corpo). Segundo escondendo Batman o máximo possível, a roupa é toda negra, nas brigas sempre se movimentando muito e com desfecho rápido.
A tríade X-Men, Homem-Aranha (Spider-Man, 2002) e Batman Begins com suas respectivas continuações arrebanhou uma montanha de dinheiro e elogios, consolidado uma nova categoria cinematográfica. Mas como este post tenta demonstrar não basta catar os direitos na editora e dar sinal verde para a produção. Tome-se como exemplo as absurdas adaptações baseadas nos quadrinhos do escocês Mark Millar, Procurado (Wanted, 2008) é uma outra história; Kick-Ass (idem, 2009) antes de ser escrita já estava vendida para os estúdios, e o filme será lançado antes de terminar de ser publicada! E o que dizer da disputa milionária por Youngblood (que na feliz definição do blog nerd MdM, é uma pilha de bosta fumegante), sem exagero: um lixo!
Corre-se o risco de temos num futuro próximo um gênero zumbi, como os musicais ou faroestes. Todos possuem códigos estritos que, se não respeitados resultam em pastiche, cuja a reincidência embota o público, mina a confiança dos produtores em apostas mais ousadas, sabotando-se ainda mais. As informações iniciais de Wolverine (idem, 2009) prometiam algo diferente e melhor do resultado apresentado; um filme massa véio, com um protagonista bunda gritando o tempo todo, para mostrar-se selvagem e perigoso.
E o que fazer? O de sempre: prestigiar o que é bom, foi gratificante ver Batman - The Dark Knight (idem, 2008) com sua arrecadação bilionária; e estar atento a coisas fora do mundo dos colantes e super-herois, Marcas da Violência (A History of Violence, 2005), Anti-Heroi Americano, (American Splendor, 2003), Ghost World (idem, 2001), OldBoy (idem, 2003), todos excelentes e vindos dos quadrinhos.

NOTA: (Mensagem Cifrada)
  • Nem a chuva, nem a neve, nem o calor, nem o escuro da noite, nem a internet lenta ou a falta de um modem impedirá o blogueiro de entregar seu post.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Que não se perca pela palavra.

Levantado do chão foi o primeiro livro de José Saramago que li, nas primeiras páginas havia um aviso que de início achei esdrúxulo. A pedido do autor a edição brasileira manteve a ortografia vigente em Portugal. E não seria a mesma, lá e cá? Lendo maravilhado, descobri que não exatamente, e mais importante, aprendi que não havia erro, na verdade a língua se tornava mais rica com suas variantes.
Vários anos, e livros depois, vejo um tanto decepcionado que Saramago, embora não um entusiasta, endossa a adoção do novo acordo ortográfico firmado entre os países de língua portuguesa. É estranho que justamente de um de seus grandes estetas, manifeste-se conformado nesse empobrecimento na marra da linguagem. Empobrecimento sim, as desculpas de unificação e simplificação não passam de falácia, enquanto o lucro das editoras com as novas impressões de livros, bem real. Óbvio que não se propõe um tratado para programas de ensino de respeito que mostrem as diferentes formas entre países, declarando-as corretas, é mais representativo assim, do que um edital vindo de um comitê.
Decidi usufruir acintosamente do "habeas corpus" de três anos de prazo da implementação gradual das novas regras, só que sempre sabichão já nos primeiros dias conhecia as alterações, aliada a neurose de ordem, acabei adotando-as desde de início no blog. Mas dá uma tristeza quando encontro solto no texto "re-eleição", ou engasgo num Coreia e perco um tempo até saber o que significa. Bem mais fácil que antes, realmente!
Por essas e outras, troquei de escritor português; sai Saramago, substituído por João Pereira Coutinho. E lavei a alma com este texto da crônica do excelente Ivan Lessa, que na cara-de-pau copio e colo logo mais abaixo, o original está aqui. Um aviso: antes de começar esteja o leitor municiado de um dicionário, não aqueles de bolso mais um legítimo pai-dos-burros, tijolão mesmo, de preferência o Houaiss.

"Elesbão, o bleso

Elesbão era conhecido na cidade por três particularidades: era bleso, sofria de incurável ofíase e criava gimnuro. Além disso, seu rosto glabriúsculo lembrava o de uma donzela gípsea.

Às tardes, cumpria um hábito cotio: com seu nariz acipitrino, lá se ia ele, em prolongadas giratas, bisbilhando sempre, entre dentes, surradas gnomas, de todos conhecidas.

Atendia-o, nos serviços de casa, um gibi magricela, portador de estranho gilvaz, que havia acolhido, por era de boamente. O tal, apesar de sua irrecuperável acídia e não raro acrasia - já que abusava dos abres, principalmente da cabriúva - era mantido por Elesbão, que morria de amores pelos saborosos doces de gila-caiota, que sabia, como ninguém, preparar.

Conta-se, porém, que certa vez, Elesbão abecou-o, por ter descoberto que o pixaim era atrevido em pôr aratacas, de pura maldade. Nesse dia, Elesbão, justamente achavescado, ficou de capiroto aceso, acofobou-se e acajipou a focinheira do cafuzo. Mas este nem chus nem bus."


domingo, 24 de maio de 2009

Górgones

Há algo pertubador na imagem abaixo:
A morte da Virgem, do mestre do barroco italiano Michelangelo Caravaggio (1571-1610). Sim, é Maria, mãe de Nosso Senhor, Jesus Cristo. Por analogia, tendemos a pensar que assim como foi poupada dos dissabores (e alguns prazeres) da vida terrena, assim também o seria no seu fim. Uma freira das minhas aulas de catecismo contou-me que alguns acreditam que Maria ascendeu aos céus, não como Jesus, em corpo luminoso; mas serenamente como carne viva.
Nada mais contrastante. A pele está esmaecida, esverdeada; ventre inchado com os gases da decomposição, cabelos desalinhados. Note a desolação das pessoas ao redor. Não, é estranho? Se alguém merece o paraíso é Maria, e afinal, reencontraria seu filho. O que explicaria penúria de Maria Madalena (abaixo, no detalhe).
Simples, o fardo da morte é terrível. O pintor não se olvida, escancarrando no vestido da Virgem um vermelho-sangue pujante. O próprio cenário foge das cores que transmite luto, sempre com as opções mais vivas. É proposital.
Caravaggio foi o ponta-de-lança da ofensiva da Igreja Católica contra os reformistas aliados a Lutero e Calvino. Nas modorrentas aulas de histórias, o professor do seu cursinho de vestibular falou sobre o Concílio de Trento, Santo Inácio de Loyola e a Companhia de Jesus. Correto, contudo insuficiente, estas medidas tem mais a ver com uma reorganização interna e política do Vaticano. No combate corpo-a-corpo pelo rebanho, contra àqueles que afirmavam que só a palavra de Deus, impresas, e nada mais, bastava para encontrar o caminha da redenção, contra-argumentou-se: e quanto os que não sabiam ler, as obras de artes nas catedrais, e igrejas não eram adornos, eram envagelizadoras, tinham papel decisivo na comoção do povo. Somente vendo, com nossos olhos, a revelação , podemos realmente acreditar.
Em vez de tentar evocar uma aúrea mística, Caravaggio buscou um realismo sem concessões, as representações de até então podiam ter um propósito arrebatador, mas sempre imponente, distante, sem alma. Preferia o corpo sem disfarces ou imposturas, o primeiro a retratar o menino Jesus como uma criança, em vez dum bizarro adulto pequeno.
Costumava desdenhar, visões do paraíso, santos, quem realmente saberia alguma coisa disso? Pecadores, vida deresgrada, isso sim está na nossa vida. Não se alcança a salvação sem atravessar a vida mundana. Contudo o chamado todos estão aptos a ouví-lo e será sempre avassalador.

É a Conversão de São Mateus, o instante exato em que o deprezível coletor de impostos atende ao chamado de Cristo: Tu vem comigo! Em seus olhos o turbilhão ao aceitar a nova fé, ele próprio chegar a duvidar apontado-se: Quem, eu? E sabemos que ele atende. E todos nós podemos no colocar no lugar dele. O mistério torna-se visível.






São Tomás de Aquino afirmou que primeiro a razão, para então a verdadeira fé. Caravaggio ousa questionar. É preciso ver, tocar, sentir, cutucar, tem que ser real, para enfim crer. A dúvida é sempre presente. O impacto da resposta, acachapante. Aqui, é o próprio Cristo que incentiva Tomé a afundar o dedo na suas feridas. Nada de insonso, filosófico, distante.




Há espaço para o humor, na espetacular e cativante Jogadores de Cartas:
O horror, e com um truque de gênio. O espanto na face é como um reflexo. Não é apenas o espectador da obra que exala repulsa, a Medusa , no momento da decapitação por Perseu, ao nos ver tem a mesma expressão. Para ela, nós que somos a abjeção:

Os tempos atuais são de desonestidades enojantes. Que outro sentimento pode se despertado quando embustes como as mostradas abaixo, ganham destaque em espaços nobres:


São algumas das obras (sic), da grande exposição no MASP, do artista Vik Muniz. É considerado o maior artista brasileiro em atividade. Isto mostra bem o estado de a quantas anda a arte no Brasil. Nem original o sujeito consegue ser, Andy Warhol já fez algo parecido, quarenta anos atrás.
E o que ele pensa? O discurso dos panacas e picaretas: romper a hierarquia da arte, tudo pode se transformar numa obra de museu. Lamento que o curador do museu tenha abdicado de suas funções, e não é de agora, no local já abrigou aquele estelionato com a arte, e nosso dinheiro (já que o evento é pesadamente subsidiado pelos impostos que pagamos) de abrigar um saguão vazio na última Bienal de Arte. O leitor deve se lembrar daquela confusão envolvendo uma pichadora presa num protesto ano passado, o ato aconteceu lá. E não posso deixar passar a estupidez desse protesto, vandalizando o local.
Voltando a Muniz, e que transcedência podemos alcançar admirando suas criações originais (sic):
Esse molho não tem uma aparência muito boa, ah, é, tem uma medusa no prato, será que fazem uma camiseta com a imagem na lojinha do museu?















Termino com algo que vale a pena falar, sempre. Davi, segurando a cabeça de Golias, uma das últimas telas de Caravaggio. É um auto-retrato. O inusitado é que suas feições não estão no herói. É Golias, decapitado e de olhos vazados onde seu rosto serviu de modelo. Na época, era um foragido com a cabeça à prêmio: vivo ou morto.
Quais suas intenções? No que pensava?
Talvez uma emulação de sua própria desdita. Um pedido de perdão. Ele próprio exortava seus demônios, sabedor que deveria ser punido. Um chiste.
Muitas teorias. Disto, dá gosto discutir!

domingo, 17 de maio de 2009

Vaticínio

O presidente Lula não deveria se preocupar com a CPI da Petrobras no senado. Em qualquer outro lugar no mundo, ela seria um tsunami, no Brasil é uma marolinha que não dá nem para esquiar.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Eclesiastes 3,1-8


Li sobre uma teoria defendendo que a derrocada da indústria musical não começou com o MP3 e o Diamond Rio. O primeiro prego no caixão foi a incorporação das gravadoras aos mastodônicos conglomerados de entretenimento. Sem autonomia, gente gabaritada, e com sensibilidade, foi substituída por engravatados, de olho apenas no balanço trimestal.
Quem se daria ao luxo de esperar pelo menos 3 discos, para que o artista amadurecesse e encontrasse seu estilo, na verdade quanto mais dócil melhor. Já na estréia emplaca-se uma sequências de hits nos rankings de mais tocadas. Aos primeiros sinais de desgaste sai mais em conta jogar ao léu o coitado e erigir the next big thing.
Gosto da idéia. Não invibializa outras (como a supracitada sobre o MP3), e reuni um binômio tão poderoso quanto devastador: ganância e burrice. Explica coisas como o triste destino da Motown. Abandonou-se a sede de Detroit , donde tinha uma verdadeira conexão, para Los Angeles, e daí em diante foi minguando. Hoje a gravadora que foi ponta-de-lança do melhor da música moderna americana (Marvin Gaye, Smokey Robinson, Supremes, Jackson 5, George Clinton, Sly and Family Stone, Rick James), vive só de acervo. Com suas particularidades a história da Atlantic e Blue Note (voltadas para o Rock e Jazz, respectivamente).
Saem Ahmet Erturgün, George Martin, Quincy Jones, Phil Spector, entram Timberland, R. Kelly, Babyface, Pharrel Williams. Digamos que são dois times vencedores, cada uma em sua época, só que uma está para o seleção brasileira na Copa de 1970 e o outro para a de 1994, com toda a carga nostálgica e qualidade embutidas na comparação.
Voltando a tese inicial, a carreira de Madeleine Peyroux funciona como "grupo de controle". Esta cantora franco-americana tem a sorte de estar num gênero que atualmente ninguém dá muita bola, o jazz. Conservando uma certa tranquilidade para levar sua obra. Teve maturidade em se apoiar nos standards, encarando com uma docilidade charmosa as comparações com os mestres, e pesos de influências, como o timbre muito próximo ao de Billie Holiday. Uma sensibilidade que imprimiu sua própria marca em canções de mitos como Leonard Cohen, Serge Gainsbourg e Elliot Smith. Suas versões não se acanham frente aos originais.
Assim, após três discos, finalmente ela se sentiu a vontade para expor suas próprias composições em Bare Bones, lançado neste ano, desde já na minha lista de melhores. O começo não é promissor, com a boboca Instead. Uma coleção de versos tolos sobre como é bacana em vez de ficar deprimido, ver como o mundo é batuta e ficar alegrinho. Como ensina Rob Fleming, no livro Alta Fidelidade, de Nick Hornby, música boa mesmo, é sobre tristeza, fossa, pé-na-bunda (e atentem que não estou dizendo que não existe música alegre e divertida). A impressão ruim permanece na faixa-título Bare Bones, mesmo sendo melhor que a anterior.
O jogo está perdido, se você for da geração Ipod, que só ouve uma, ou duas faixas, e dez segundos das outras. Nós velhos caquéticos da velha ordem temos esta teimosia de ouvir todo o disco, chegou a hora da virada. Damn the Circunstances é linda:

Now the lines are drawn and we sleep in the rags and dust/ Where all good will has gone and the dreams we had went bust.

Você ainda está se recuperando e na sequência, versos tão diretos e devastadores como os de River of Tears:

Stop all this talk, turn off the telephone/ Open up another bottle, send those people home/Let it get real quiet, turn that lamp way down low/ I’m gonna float down this river of tears.

O clima é de intimidade, longe de declarações derramadas. Arranjos musicais minimalistas acentuam a voz, e ela embora delicada, chicoteia e marca sua mente:

I shiver in the mirror, pull my belt across my hips/ The leather’s hard in bending as your fingers to my lips/ I wrap it tightly in defense as if your arms were near/ But for your love and treachery there’s nothing left to fear/ I’ll take a glass of wine and recall the words you spoke/ From the bottom of your cup, covered in spit and smoke/ But in your voice I’ll hear my own and recognize the crime/ That all your love and treachery has ended up as mine/

Minha favorita Love and Treachery.
Bate uma tristeza quando me lembro que os discos de Madeleine Peyroux são um tanto bissextos, mas quem sabe:

Instead of feelin' low, get high on everything that you love. (É boboca, mas o ritmo é tão legal!)

ATUALIZANDO:
O post deveria ter links para as músicas citadas, e os leitores não imaginam minha decepção ao varrer sites como o Youtube e Rádio Uol, sem encontar nada.
Isto ficava martelando na minha cabeça, e não é que num estalo, acordando de madrugada, 04:52 (acredite, tive a pachorra de olhar a hora). E porque não olhar no Hype Machine. EURECA, segue o link, aqui.

sábado, 9 de maio de 2009

2 Histórias.

Sábado costumo tirar uma longa soneca. Acordo em torno das 4 horas da tarde, e passo o resto do dia checando e-mails, lendo os jornais e sites na internet. Hoje levantei mais cedo, por volta das 15:00hs, e como minha irmã usava o computador, resolvi ver um pouco de TV.
Lembrei-me porque adotei esta rotina, a melhor atração no momento era o programa do Luciano Huck, e isso é o bastante para dizer muito sobre a televisão aberta brasileira. Para comparação, o SBT apresentava a estréia de Netinho de Paula, no final, uma cópia deslavada do da Globo, só que mais brega, mais piegas, mais pobre, mais desinteressante, em suma: mais Netinho de Paula.
Num momento, Huck disse que fazia uma modernização do Cassino do Chacrinha. Ele está certo, as coincidências vão além de ocuparem o mesmo horário, em épocas diferentes. Os dois ganham muito dinheiro explorando a ignorancia, preconceito, sexualidade barata e pessoas necessitadas.
Duas historinhas rápidas sobre Chacrinha.
Década de 80 do século passado, sem MTV, MySpace, LastFM, MP3, bittorrent, o melhor da crítica especializada estava em meios marginais como franzines, ou rádios segmentadas. Para um grupo musical ser conhecido nacionalmente tinha que se apresentar na televisão. A Rede Globo, ciente de seu poder, era muito paparicada. Ter uma música na trilha sonora da novela (comercializada pela gravadora do grupo: Som Livre), estrear um clip no Fantástico, engolir o orgulho e encarar um playback no Globo de Ouro, era decisivo para o artista ou grupo estourar. No Cassino do Chacrinha, não tinha firula, bastava pagar, o que no jargão musical é conhecido como jabaculê. Não tem dinheiro na mão, sem problema, bastava fazer apresentações de graça nas intermináveis turnês de show, que Aberlado Barbosa promovia, tirando mais um por fora, bastava acertar as datas. O Ira! não topou, sabe-se que a discursão não se deu em termos amenos, e Leleco, filho do apresentador, responsável pela produção na televisão e agenda do pai, os pôs na geladeira, e durante muitos anos, não se apresentaram na emissora. E talvez, não por acaso, mesmo tendo grande canções, e o melhor guitarrista do rock brasileiro, Edgard Scandura, o Ira! nunca teve o mesmo destaque que figurinhas fáceis como Paralamas do Sucesso, e Titãs.
Muitos gênios também tiveram aspectos nas suas personalidades, ou biografias questionáveis, a lista é bem longa. só que Abelardo Barbosa não era gênio, só um enorme sacana. Qual seu legado afinal? Duas frases pouco inspiradas (eu vim para confudir, não para explicar; quem não se comunica se trumbica), e figuras como João Kleber, Elke Maravilha, Sidney Magal, Rita Cadillac, Gretchen...
Segunda história, mesmo século, meados dos ano 60's. De férias, o poeta João Cabral de Melo Neto visita amigos no Rio de Janeiro. No local, é anunciado que Chacrinha entrava. "Chacrinha, quem é Chacrinha?" perguntou João Cabral, que mesmo que pelo serviço no Itamaraty, atuava como cônsul em Barcelona, com um oceano de distância, era capaz de não saber quem chegava. Cruzando a mesa, Chacrinha solta um: "Cabral!!" a plenos pulmões. O outro responde: "Abelardo!" e se abraçam chorando. Explica-se: os dois foram colegas no Colégio Marista em Recife e não se viam há mais de trinta anos.

NOTA:

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Who gives a fuck?

Do you speak english? Como traduziria o título acima? Várias vezes nos filmes a dublagem brasileira escolheu, "quem se importa com isso", e quando o intérprete estava furioso, "tô me lixando". De certa forma, está correto; mas de certa forma Sílvio Berlusconi (atual premiê da Itália) é um político de opiniões fortes, ou seja, não é essencialmente veraz. Tolheu-se a venalidade da expressão.
Imagine uma cena onde um pistoleiro liga para seu capo da máfia, e diz que o antigo consigliere da famiglia, principal testemunha numa investigação do FBI, a quem foi instruído a matar, está acompanhado do filho, mate os dois então, fala o bandido; é um menino de oito anos; e quem se importa com isso?
Outra, dessa vez no Country Club londrino, dois colegas do time de Pólo e ex-estudantes de Eton, o décimo-sétimo conde de Halifax, encontra o dono do maior estaleiro em York, trocando o seguinte diálogo: Meu Deus, homem! O que deu em você? É verão, e você usando cashmere!, o outro pousa seu cálice com xerez na mesa e, ora meu caro, e quem se importa com isso?
Dois episódios possíveis, fazem sentido, mas não críveis. As situações, personagens, contextos não batem. Um roteirista profissional, digno de assim ser qualificado, não escreveria isso. Então não é aceitável que na tradução seja descuidada, e prefira a escolha mais preguiçosa.
Há um lugar-comum em dizer que no Brasil tem a melhor dublagem do mundo, não tenho idéia de onde isso surgiu, e não entendo porque alguém, além dos próprios dubladores, a defendem tão ardorosamente. Até pode ser verdade, não dá para tirar os méritos de vários trabalhos tão carismáticos, tal é a identificação com o personagem, que atrapalha qualquer substituição. Tive essa sensação n'O Fugitivo (The Fugitive, 1993), Harrison Ford tinha a "voz de Bruce Willis". O Eddie Murphy de 48 Horas (48 Hours, 1982) é "diferente" de Um Tira da Pesada (Beverly Hills Cop, 1984), que para todos os efeitos é a oficial. O caso mais recente, e desastroso, foi a mudança da voz de Homer Simpson, que pelo que li sobre o assunto se deu, vergonhosamente e apenas, por razôes pecuniárias.
Gostaria de discorrer sobre alguns pontos. Relembrando, é inegável a capacidade que muitos dubladores brasileiros tem em criar empatia com o público, mas o objetivo aqui é mais criterioso.
Curioso que todas as vozes sempre estão no mesmo tom, seja que os personagens estejam se esgoelem em desespero, ou confabulando aos sussuros. A diferença é que nos últimos as palavras soam sibilantes e longas, e nas outras as vogais são mais abertas e com as palavras mais ditadas de modo mais rápido. O espectador perde um recurso a mais que valoriza o trabalho do ator e dá sutileza à história. Nota-se isso com Philip Seymour Hoffman em Capote (idem, 2005), reproduzindo a voz muito particular de Truman Capote (que é bem diferente da sua) com a mesma elegância da escrita dele. E prevejo que acontecerá com o Coringa de Heth Ledger no último filme do Batman (ainda não aluguei o filme, já disponível nas locadoras, e não pude conferir, se for o seu caso, caro leitor, esteja a vontade para deixar sua opinião nos comentários).
Outra armadilha, não solucionada é o sotaque. A casca de banana não é exatamente o estrangeiro exótico (oriental, do leste europeu, russo, africano, etc), mas o regional, o peculiar. Os personagens rurais, e preferencialmente cômicos, acabam falando num estilo que com boa-vontade pode ser rotulado como mineiro-caipira-retardado. Não é engraçado, é ridiculo. Caso queira presenciar um momento de vergonha alheia, procure Janela Secreta (Secret Window, 2004) e com o fast-foward, veja as cenas com John Turturro com o aúdio em português.
Por fim, o que motivou o post, e limitando apenas a produções faladas em inglês, onde o signatário tem alguma, mas não muita, autoridade para considerações.
A maior das bizarrices acontece no final d'O Bom Pastor (The Good Shephard, 2006), Edward Wilson e Richard Hayes (Matt Damon e Lee Pace, respectivamente) conversam. O que eles falam, o que está legendado e a dublagem, são três coisas divergentes. A legendado tenta se aproximar do original, mas a dublagem atira para outro lado. É verdade que o que conversam, tem relação com uma particularidade da língua inglesa que não encontra equivalente semântico em português, entretanto os tradutores podiam rebolar mais.
Incomoda também a suavização da linguagem. De início, é até louvável, nos dias de hoje, fuck é praticamente uma vírgulas nas frases, e nesse ritmo não deve demorar para ouvirmos até nos filmes da Disney, merecemos ser poupados disso.
O busílis nas vezes que se traem, ou emascula o roteiro. A linguagem forte participa na caracterização e dá profundidade à narrativa. Negligenciar isto prejudica a apreciação da obra. Atrapalha a conexão com nossas histórias pessoais.
Foi o que aconteceu na sexta-feira passada, quando a Globo exibiu Closer - Perto Demais (Closer, 2004). As situações oscilam entre o hilário e o insosso.
Larry (Clive Owen) está desesperado ao saber que está a mulher o está deixando, logo espumando de raiva por se descobrir traído, não vai resguadar pudores em perguntar polidamente: "vocês transaram nesta casa".
Ou antes quando ele troca mensagens num chat, e Dan (Jude Law) , a quem o doutor pensa ser uma mulher o chama de o sultão da mulherada, o termo não foi bem esse.
Não gostaria que a impressão fosse apenas sobre a vulgaridade, mas a habilidade de usando-a construir uma cena memorável. Como aquela em que Larry encontra Alice em um Clube de Strip-Tease e vão para uma cabine particular:
-Você é linda.
-Obrigada!
-What does your cunt taste like?
-Paraíso.
A frase em inglês foi traduzida como 'que gosto você tem?", fica esmaecida. Para quem sabe inglês, e claro viu o filme, podendo ver a perfomance arrasadora de Owen sabe que ele aliou essa grosseria com fragilidade. A luxúria e a solidariedade com alguém tão machucado quanto ele próprio. Pena que algo assim tão precioso seja perdido.
Não dá para dizer qual a melhor das dublagens, porque bem, teríamos que conhecê-las todas, e com avaliadores versados em todas as línguas afora. E quer saber duma coisa? Who gives a fuck?

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A involução das espécies do Soul

Se a evolução se dá aos saltos, a regressão será por reboladas.
No bicentenário do nascimento de Charles Darwin, eis aí mais uma prova de que a não aplicação de suas teorias resultam em catástrofe:



Os primeiros detratores foram fundamentalistas religiosos que inventaram o Design Inteligente. Os novos inimigos são os executivos de gravadoras que trouxeram à luz, o horror: Justin Timberlake. O homem do Soul, que aprendeu a dominar, com sofisticação as ferramentas da sua voz, para garantir a sobrevivência, posto ao lado dum macaco. Que espetáculo deprimente!

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Ao mestre com carinho!

Muitos ensaios discorrem sobre a importância das frases iniciais dum livro para arrebatar o leitor. Os mesmos argumentos podem ser transpostos para os filmes, o estranho é que demorou pouco mais de 50 anos da criação do cinema para alguém notar isto, e dá-lhe o refinamento, que ainda hoje não foi superado. Este homem foi americano Saul Bass. Formado pela escola de Design de Nova York, atendeu um pedido do diretor Otto Preminger, criar a abertura de Carmem Jones (idem, 1954). Os créditos, que de início, atendiam apenas exigências protocolares dos sindicatos, passaram a preâmbulo da história.
Carmem Jones é uma adaptação do musical da Broadway de mesmo nome, que por sua vez inspirado em Carmem, ópera de Bizet. Veja abaixo a solução empregada por Bass:



Com este trabalho, tornou-se um dos profissionais mais requisitados de Hollywood, e naturalmente, se deu ao luxo de trabalhar com os melhores. Em nova parceria com Preminger esteve no clássico Anatomia de um Crime (Anatomy of a Murder, 1959); um espetáculo ainda mais grandioso:



Bass foi ainda membro da equipe técnica responsável pelo que de melhor Alfred Hitchcock fez em sua carreira. Junto ao fotógrafo Robert Burks, o montador George Tomasini e o compositor Bernard Herrmann. Todos presentes em obras-primas como Um Corpo Que Cai (Vertigo, 1958):




e Psicose (Psycho, 1960):



É de Psicose umas das mais deliciosas querelas cinematográficas. Saul Bass sempre afirmou que a sequência do ataque no chuveiro, não apenas é idéia sua, como chegou a gravar um teste de câmeras com uma dublê, montou já na forma que se eternalizaria, e no fim das contas ele e Hitch co-dirigiram a cena com a atriz Janet Leigh. Hitchcock, por sua vez achava absurda a história, segundo ele, Bass apresentou uma versão, que rejeitou de cara, disse o que queria, detalhadamente, aprovou então os storyboards, e rodou tudo sozinho. Membros da filmagens corrobararam a narrativa de Bass, Leigh ficou com a de Hitchcock.
A partir dos anos 80, do século passado, o convites rarearam, e junto com a mulher, Elaine, voltou a Nova York dedicando-se a seu bensucedido estúdio de Design Industrial. Deve-se ao maior dos nerds do cinema, Martin Scorcese a volta triunfal do grande artista.
Com sua humildade e entusiasmo característicos, Scorcese convidou-lhe a fazer a abertura do filme que trabalhava na época: Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1989). O resultado? Os hilariantes créditos "cheirados" tal como uma carreira de cocaína:



Depois desse começo auspicioso, participou de todos os filmes do diretor ítalo-americano até sua morte em 1996. Sua presença de tão marcante que gerou herdeiros insuspeitos.
Seven - Os Setes Pecados Capitais (Se7en, 1995):



Prenda-me Se For Capaz (Catch Me If You Can, 2002):



Ou plágios descarados compare os créditos de A Época da Inoncência (The Age Of Innoncence, 1993) e os da minissérie da Rede Globo, Os Maias (idem, 2001):





O mesmo para os cartazes, pelos quais também foi revolucionário. Veja as "semelhanças" dos de Anatomia de um Crime e Clockers - Irmãos de Sangue (Clockers, 1995):


Proponho um tira-teima, escolha qual dos pôsteres para o mesmo filme, é mais belo, o da esquerda é de Saul Bass:


Encerro com os dois, na minha opinião pessoal, melhores trabalhos. Não consigo apontar um que seja superior ao outro.
Cassino (Casino, 1995)



Spartacus (idem, 1960)



NOTAS:
  1. A idéia para o post nasceu de uma conversa com meu amigo, Márcio Aguiar, sendo a ele, então dedicado.
  2. Por uma orientação tacanha, a Rede Globo vem sistematicamente cortando as aberturas dos filmes exibidos na emissora. Quanto as séries de TV, o corte é sumário, sempre usando uma edição mambembe. O caso mais revoltante é o de Simpsons, todas as aberturas de cada episódio do desenho animado são diferentes, e nunca, repito, nunca foram mostradas pelo canal. Claro que quando se trata de seus próprios produtos, o caso é diferente, vai ver que é porque são assinados pelo gênio da raça, Hans Donner.