sábado, 13 de dezembro de 2008

Reminiscências


Era um pouco mais novo que o Bentinho menino, do começo de Dom Casmurro, quando li-o pela primeira vez. Detestei. Confessando isto, não tenho como não citar passagem do livro no Capítulo XVIII: "Ao relembrá-las não me acho ridículo, a adolescência e a infância, não são, nestes pontos ridículas; é um dos seus privilégios". Tive sorte, ao menos aqui, Bentinho permaneceu o mesmo garoto tolo e caprichoso até a velhice. Escuso-me a dizer que sou uma pessoa melhor em pespectiva, tornei-me mais cético, mais amargurado, mais recluso, em suma mais maduro. Aos 18 anos, sem compromisso, reli o Dom Casmurro, e fiquei maravilhado, principalmente pelo texto, que só então notei, hilário, e a cada vez mais engraçado em toda nova empreitada. Hoje me divirto na hipótese que no futuro tenha que engolir as palavras que escrevo, comentando a adaptação de Luís Fernando Carvalho, Capitu que acabou semana passada.
Caro leitor, desconfie de quem tenta modernizar qualquer clássico. Um cânone como tal é irretocável, não precisa desses escapismos. Não é que sejam desprovidos de falhas, ou lacunas; n'O Processo de Kafka, o Capítulo VIII está inacabado e assim ficou; e por mais esdrúxulo que seja para quem não leu, o resultado é de absoluta coesão. A manobra tem menos a ver com tornar mais acessível o autor, e sim para facilitar o trabalho do adaptador.
Menciono duas, na expressão da moda, reimaginações, não embusteiras, envolvendo o cânone dos cânones, Shakespeare. Uma delas seguramente a melhor versão já feita. Ricardo III (1995) de Richard Loncraine na direção e Sir Ian McKelley no papel título. Ação é transposta do final da Guerras das Rosas do século XV, para o XX década de 30. O simbolo estilizado do javali, as fardas negras do exército e apoiadores do Rei (lembrando as da SS nazista e os camisas negras da Itália facista), ao som de clássicos das big bands são espetaculares. Soluções como do monólogo inicial da peça (precedido de um prólogo eletrizante), um discurso transmitido à nação do baile de comemoração pelo fim da guerra civil, a ardilosa sedução de Lady Anne acontecendo no necrotério, maravilhosas.
Parafraseando o grande crítico de arte, Giulio Carlo Argan, Hamlet (1996) de Kenneth Branagh é um anti-clássico clássico, pela opção conservadora de usar o texto integral, o resultado é um filme de quatro horas. Existe uma versão editada para duas horas e meia, quem conhece as duas é unânime é apontar a maior como favorita, não só pelo óbvio do desenrolar da trama, mas também por ser mais agradável, não se sente o tempo passar. O cenário muda da recorrente tarcituna corte dinamarquesa na Idade Média, para um luxuoso e iluminado Elsinore, que poderia situar-se no pós-guerras napoleônicas. Além disso o castelo é repleto de espelhos, como se na tentativa que nada há de se esconder no reino; mais, os espelhos são entradas para as passagens secretas.

A mais acertada das escolhas de Luís Fernando Carvalho foi nas partes pinçadas para a mini-série, usar o texto original, sem enxertos, cenas adicionais e/ou explicativas. Colateral, o passo seguinte foi a recusa dum relato naturalista, optando pelo teatral; ironia fina, Machado de Assis é formalmente o introdutor da escola Realista no país (e por Memórias Póstumas de Brás Cubas, quem o leu, acha ainda mais graça do chiste), como falei acima, poupa o diretor de procurar saídas, todas no final, insastifatórias.
Decisões corretas, mas dada a complexidade da obra, se anda no fio da navalha, e várias vezes perdeu-se o siso. A caracterização de Bentinho idoso/narrador é carregadíssima, a postura curvada e encolhida, o tom de voz grave, enervava. Além do ridículo dos bigodes pintados com lápis preto, o personagem deve trazer um tom ridículo, só que, no fim, ficava o estúpido. Outros personagens pelo mesmo motivo estão apatetados como Tio Cosme e Prima Justina, caricaturas toscas. Quem acertou o tom foi Antônio Karnewale que casou de ter no agregado José Dias, com suas afetações, amor pelo superlativos, "no seu modo de dar uma feição monumental às idéias", todo excesso não apenas perdoado, e sim jocosamente insuficiente.
Uma coleção de ninharias, mas pelo volume maculam. Bentinho e Capitu, já casados saem para um passeio e toca Mercedes-Benz de Janis Joplin, num baile o casal antes da dança colocam os fones brancos de IPods. Um dos capítulos que mais gosto, o VI (O administrador interino) donde se extrai: "Viveu assim vinte dois meses na suposição de uma eterna interinidade" (obs.: grifo meu); é arruinada por um pedante Cheek to Cheek de Cole Porter.
Entretanto a mesma Cheek to Cheek funcionou ao ser executada na comovente cena da morte de José Dias. Outra: dona Maria da Glória sendo vestida ao som de God Save The Queen dos Sex Pistols, perfeito! Retrata uma ordem decrépita, porém poderosa, o fecho de ouro, troca-se os pajens andróginos e pálidos; o cortejo que acompanha a dama são mucamas com vistosos turbantes africanos. Ápice, a primeira entrada de Escobar com uma coreografia vigorosa ,acompanhando Iron Man do Black Sabbath.
Não tenho problemas com narrativas não-lineares (admiro David Lynch, e sim, gostei de Império dos Sonhos), enxurradas de conteúdo, ações e dados acontecendo ao mesmo tempo (O Livro de Cabeceira de Peter Greenaway é um dos melhores filmes que vi na vida), e cenários que exigem esforço da audiência (como Dogville e Manderlay). O nó górdio é quando tudo isso é por dissimulação, sem uma idéia de lastro. Tanto assim que apenas no último episódio alcançou o sublime. As "inovações" até diminuiram, mas agora são elegantes; no Capítulo CXXXV, Bentinho assiste Otelo, o Mouro de Veneza, no teatro, não a peça, o filme de Orson Wells , repentindo incessantemente a cena do assassinato de Desdêmona. Bentinho adulto e recém-casado com Capitu continua impostado, mas sem a mão-pesada (e sem bigodinho pintado à lápis). Neste dia a mais impressionante das cenas, o enterro de Escobar, cenário de um fundo branco, alvíssimo e infinito o cortejo se aproxima do féretro todos vestidos de negro. Ao final, Michel Melamed grandioso, na sequência quando Bentinho faz um discurso, o impacto do turbilhão de emoções, a dor pela morte do amigo, vergonha pela situação de expor-se, a dúvida se a mulher o traiu, a confusão tentando decidir que está sofrendo mais se a "suposta amante" de Escobar ou Sancha e o patético quando rasga o discurso e atira os pedaços no túmulo. Genial!
Um último desleixo ficou. Ezequiel visita o pai após a morte da mãe, no livro temos apenas o relato de Bentinho, e como ele reiteradas vezes diz, não é narrador confiável, ao vê-lo afirma, "Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. (...). Era o filho de seu pai". No livro fica a sutileza, na série o garoto era cuspido e escarrado o morto, importante os dois papéis não foram interpretados pelo mesmo ator. Ora, porque não aí fazer o ator usar uma máscara com a cara de Escobar. É legítimo deixar claro que a impressão é enviesada, do jeito que ficou, Capitu era mesmo uma rameira.
Carvalho no aspecto técnico é irrepreensível fotografia, iluminação, edição deveriam servir de referência para os novatos, o figurino é luxuoso. Mostra o tino para escolher protagonistas mulheres como já tinha feito com Simone Spoladore em Lavoura Arcaica (2001). A revelação, Letícia Persiles numa Capitu jovem, encantadora, vibrante, e Maria Fernanda Cândido (trívia: ela já esteve noutra adaptação de Dom Casmurro, e no mesmo papel, o pavoroso filme Dom, de Moacyr Góes), na agora mulher segura e elegante, a antítese de Bentinho, que não tem energia para nada. Capitu é a força motriz da trama, enquanto a teve ao lado ele teve uma vida, sem ela vai murchando. O verdadeiro mistério não é se ele traiu o marido com Escobar, é o que atraiu em Bentinho. Quem acredita que a resposta é a simples ascensão social, é tão vazio e vulgar quanto seus acusadores, coisa que Capitu não é.
Duas cenas de puro deslumbre:




A poesia só merece o nome quando é capaz de gelar o corpo que a lê.

Uma palavra se abre
Como um sabre -
Pode ferir homens armados
Com sílabas de farpa
Depois se cala -
Mas onde ela caiu
Quem se salvou dirá
No dia de desfile
Que algum Irmão de armas
Parou de respirar.
___

Não sou Ninguém! Quem é
você?
Ninguém - Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste - ser - Alguém!
Que pública - a Fama -
Dizer seu nome - como a Rã -
Para as almas da Lama!
___

Sépala, pétala e um espinho -
Nesta manhã radiosa -
Gota de orvalho - Abelhas -
Brisa -
Folhas em remoinho -
Sou uma rosa!
___
1830 - 1886

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Madeleine, Madeleine, Madeleine...

Jô Soares hoje é um zumbi, nada mais apropriado que esteja perdido, assombrando na madrugada. Como todo morto-vivo ele está atrás de miolos, comeu os dele primeiro e agora parte para devorar os nossos. Isso explica o porquê de tão preguiçoso, faz as chamadas do seu programa sentado, na introdução, praticamente limita-se a ler algo engraçadinho das correntes na internet, muito diferente quando fazia um legítimo e inspirado stand-up, repete as mesmas piadas e brincadeiras com o sexteto e o garçom, e nas entrevistas não parece se dar ao trabalho de pesquisar o convidado, passando a sensação de "vamos ver no que vai dar". E aquele elevador no cenário, serve para quê mesmo? Até fico feliz quando chega o horário de verão, durante o período o Programa do Jô termina uma hora mais cedo, e com sorte o Intercine programou um filme legal (e não tão porcamente cortado).
A salvação é quando aparece uma atração fora do padrão (não ajuda também a produção em sintonia como o chefe, agendado com tanta gente mixuruca). Tive uma surpresa ontem quando percebi que o programa ontem seria assim, e foi bem fortuito mesmo; pensava em dormir depois do Jornal da Globo e esperei, meio enfadado para ver quem estaria lá. E logo no começo abri um baita sorriso, era a fabulosa Madeleine Peyroux!!
Era só correr para o abraço, só que claro, abusaram da minha paciência, tive que atravessar dois blocos com uma entrevista qualquer nota com Andreia Beltrão junto a um moleque sem graça, divulgando um filme que ninguém vai ver. O gordo, no melhor estilo do seu ex-patrão, Sílvio Santos, constrangeu o coitado do menino, sem que ele percebesse. É capaz de se lembrar agradecido daquele momento.
Já com Madeleine perdeu-se um tempo enorme, e sem motivo, discutindo a eleição de Barack Obama nos EUA, noutro momento Jô Soares perguntou sobre influências de músicos ativistas no trabalho de Peyroux. Foi desconcertante pois ela não tem uma militância ativa e nem em suas canções percebe-se algo do tipo, na verdade é até bem reservada. Uma história divertida é que sua gravadora contratou um detetive particular para encontrá-la, pois ela tinha sumido na época da divulgação dum disco.
O que salvou a noite, foi Madeleine Peyroux, tímida mas simpática, com canjas de suas músicas. Em homenagem a ela, posto alguns vídeos das minhas canções favoritas. Para o leitor deste blog, que acha mais importante os posicionamentos políticos dela, o signatário informa que ela votou, pelo correio, em Obama, e está muito feliz por sua vitória.
Between the Bars:


Dance Me to The End of Love:


La Javainese: