quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Até adamantium pode vergar

Contemporâneos da mesma década do século XIX, cinema e quadrinhos surgiram como diversão barata. Coincidentemente, primeiras experiências de mescla-los foram em suas épocas de ouro, nos anos de 1940. Os seriados de Batman, Shazam (Capitão Marvel), Flash Gordon, Fu Manchu, Capitão América, Superman. Uma e outra arte se retroalimentou, Orson Wells, fã confesso do Spirit , inspirou-se nos grandes planos e jogos de luzes espetaculares do traço de Will Eisner, para o Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). E donde veio as referências de Eisner? Dos filmes do expressionismo alemão: O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920), Os Crimes do Dr. Marbuse (Das testament des Dr. Mabuse, 1933), M - O Vampiro de Dusseldorf (M, 1931), e outros.
A parceria foi sabotada pelo ataque inclemente da onda de puritanismo rasteiro dos anos 1950. Vieram o código Hayes para Hollywood (entre outras coisas; ainda que casados, haveria duas camas no quarto dos conjugues, separados por um móvel; beijos só de alguns segundos, nunca com língua à mostra); e o Comics Code Authority nas editoras, sobre isso basta dizer que é o grande responsável pela enxurrada de histórias imbecializantes que serviram de mote para o seriado camp de Batman (aquele desastre protagonizado por Adam West e Burt Ward). Tolhe-se qualquer menção de conflito, angústia e sexualidade (embora esdrúxulamente só reforçou a suposta homosexualidade da dupla dinâmica). As empresas especializadas nos quadrinhos de terror, vertente mais interessante na época, faliram. Não se pode esquecer do comitê de Atividades Antiamericanas presidido pelo senador (e biruta) Joseph McCathy, que na sua paronóia anticomunista perseguiu o quanto pode, todos os artistas que conseguiu.
O divórcio durou os 40 anos seguintes, com tentativas de aproximação, destaco três, discutíveis se as melhores, porém acredito significativas do período, Barbarella (idem, 1968), Superman (idem, 1978) e Batman (idem, 1989). A rigor, nenhum deles têm legítimas conexões com os quadrinhos que os inspiraram. Barbarella é muito mais um retrato dos anos 1960's e veículo para sua estrela, Jane Fonda. O filme de Richard Donner transpõe um ícone planetário para uma plataforma específica; sua incrível bilheteria na época com certeza não era composta pelos os leitores do gibi do kryptoniano, não obstante, o reconheciam e sabiam de sua história. Tim Burton também se serviu disso, mas com uma proposta oposta: Batman, o filme, é a visão particular de um criador sobre o ídolo. Gotham City não é uma metrópole urbana, está mais para uma gigantesca vila gótica assombrada por bizarros malfeitores (estranho que poucos realmente ameaçadores), com um guardião inadequado. E manipulado, o assassino dos pais de Bruce Wayne não é o Coringa. O clima de fábula se acirra na sequência: Batman, o Retorno (Batman Returns, 1992) com as origens do Pinguim, abandonado num cesto de vime; e a da Mulher-Gato, que ressuscita duma queda ao ser lambida por gatos (quem sabe são gatos radiotivos?).
O que temos em comum aqui é que nenhum destes filmes usou a grande contribuição que os quadrinhos podem oferecer. Por favor, não estou me referindo a obviedade de seus painéis servirem como storyboards já prontos, falo do que é mais precioso: o roteiro. Importante é não confundir com enredo, nisso basta uma linha: vilão sequestra a mocinha, heroí parte para resgaste, luta, vilão preso, casal reunido, fim. A construção dos personagens, como interagem uns com os outros, suas marcas pessoais, motivações, fantasmas e dramas pessoais, um manancial valioso. Muitos quadrinhos têm décadas de erros e acertos sobre o que faz determinado personagem. Se o Superman matasse a torto e a direito, ou o Batman só mais um riquinho sem angústias que nas horas vagas tem como hobby combater o crime; nunca alcançariam a mística que possuem.
Credito uma das falhas que prejudicou Superman Returns (idem, 2006) precisamente a escolha de ser uma adaptação não da HQ, e sim do filme dos anos 1970's. A Fortaleza da Solidão formada por cristais é um anacronismo brega, a redação do Planeta Diário parece saída de uma sitcom sem-graça. E um Lex Luthor panaca, que casa com uma velhota moribunda para fingir estar regenerado não funciona. Ao menos Kevin Spacey não carregou na estultice, no cerco ao Superman na ilha artificial tivemos lampejos da ira contra o heroi.
A desfiguração de personagens rende casos estranhos como as adaptações de obras do gênio Alan Moore. Sem reducionismo ou condescendência Moore está para os quadrinhos como Shakespeare está para a literatura, isso se depois de ler suas obras ainda acreditar que haja distinção entre elas. Por isso cada tentativa nas telas vem acompanhada de frustração, talvez o único cineasta com estofo para tarefa tenha sido Stanley Kubrick. Constatine (idem, 2005) e V de Vingança (V for Vendetta, 2005) são até bons filmes, para quem não leu as histórias originais. Para A Liga Extraordinária ( The League of Extraordinary Gentlemen, 2003), O Monstro do Pantâno (Swamp Thing, 1982) (dirigido por Wes Craven ??) e o recente Watchmen (idem 2009) o desprezo é pouco.
Por sua vez não defendo a fidelização extrema. Sin City (idem, 2005) e 300 (idem, 2005) no que pesem suas direções de arte e visuais arrebatadores, são meras traduções tridimensionais das obras originais, quiçá não por acaso que são bem rasas na trama. Não há lá muita profundidade em Marv, ou no Assassino Amarelo. Leônidas e a Rainha Gorgo são os únicos com alguma densidade no filme de Zack Snider, difícil que as pessoas sequer lembrem o nome de quem Rodrigo Santoro interpreta.
É chilique se importar que o Homem-Aranha no cinema produza sua teia orgânicamente, em vez de usar os tradicionais lançadores. É necessário entender que com isso o diretor pode usar o tempo para desenvolver um outro aspecto, como por exemplo a relação com o tio Ben. O cuidado é para não buscar o porquê dos lançadores: Peter Parker é um cientista, e criou um produto que uma vez patenteado poderia lhe render milhões, mas se fizer isto sua identidade secreta estará em perigo e porá em risco seus entes queridos; como está sempre em penúria financeira só aprofunda seus dilemas.
Uma das felizes transgressões é X-Men (idem, 200). O plot já tem uma conexão com a atualidade ao lidar com genética, preconceito e racismo. Bryan Singer, um dos diretores mais inteligentes do cinema americano (o que só acentua a decepção no Superman, o Retorno) fincou o pé ainda mais na realidade e construiu um filme de ficção-científica de fôlego. O embate Xavier-Magneto não tem nada da (maravilhosa) bobagem à la James Bond, lunático quer dominar o mundo, e um agente esperto (Wolverine), junto com sua turminha maneira não deixa.
Por fim a percepção das diferentes dinâmicas entre as mídias. Existe algo que na minha petulância característica chamo de lei Alexandre Melo - Bryan Singer para adaptações cinematográficas; seu enunciado diz: Não importa o quão sensacional seja o design nos quadrinhos, alguém de carne e osso vestido assim parecerá ridículo, e.g.: o Flash. Singer fez os X-Men abandonar os colantes, vestindo-os com couro preto. Christopher Nolan em Batman Begins (idem, 2005) "intuitivamente" estava atento à norma e na impossibilidade de contorná-la (um homem-morcego de sobretudo?), adapto-a, primeiro dando uma função específica para cada aspecto do uniforme, seja nas orelhas (microfones omnidirecionais) ou nas ridículas barbatanas nas luvas (rígidas e úteis nas lutas corpo-a-corpo). Segundo escondendo Batman o máximo possível, a roupa é toda negra, nas brigas sempre se movimentando muito e com desfecho rápido.
A tríade X-Men, Homem-Aranha (Spider-Man, 2002) e Batman Begins com suas respectivas continuações arrebanhou uma montanha de dinheiro e elogios, consolidado uma nova categoria cinematográfica. Mas como este post tenta demonstrar não basta catar os direitos na editora e dar sinal verde para a produção. Tome-se como exemplo as absurdas adaptações baseadas nos quadrinhos do escocês Mark Millar, Procurado (Wanted, 2008) é uma outra história; Kick-Ass (idem, 2009) antes de ser escrita já estava vendida para os estúdios, e o filme será lançado antes de terminar de ser publicada! E o que dizer da disputa milionária por Youngblood (que na feliz definição do blog nerd MdM, é uma pilha de bosta fumegante), sem exagero: um lixo!
Corre-se o risco de temos num futuro próximo um gênero zumbi, como os musicais ou faroestes. Todos possuem códigos estritos que, se não respeitados resultam em pastiche, cuja a reincidência embota o público, mina a confiança dos produtores em apostas mais ousadas, sabotando-se ainda mais. As informações iniciais de Wolverine (idem, 2009) prometiam algo diferente e melhor do resultado apresentado; um filme massa véio, com um protagonista bunda gritando o tempo todo, para mostrar-se selvagem e perigoso.
E o que fazer? O de sempre: prestigiar o que é bom, foi gratificante ver Batman - The Dark Knight (idem, 2008) com sua arrecadação bilionária; e estar atento a coisas fora do mundo dos colantes e super-herois, Marcas da Violência (A History of Violence, 2005), Anti-Heroi Americano, (American Splendor, 2003), Ghost World (idem, 2001), OldBoy (idem, 2003), todos excelentes e vindos dos quadrinhos.

NOTA: (Mensagem Cifrada)
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