terça-feira, 18 de agosto de 2009

Era uma vez...

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...quando o recluso ogro Alexandre recebeu um convite para sair de sua caverna e ir aos festejos de fim de ano das meninas Rute e Sara. O convite não era fora de propósito pois o ser disforme era parente delas, porém inusitado: dias antes numa taverna ele declarara que seu objetivo na vida era construir um bunker anti-humanidade e das adeus a tudo (uma brincadeira, por certo; jamais que ele conseguiria juntar a soma necessária). Aceitou, era genuíno o apreço pela infantas e o respeito pelos pais delas. Na data marcada estava lá, se divertiu e coroou a noite num banquente com pastel de frango e catupiry. O ogro continuou sua vida solitária, mas guardava feliz a lembrança daquela noite.


As meninas estavam muito bonitas, Rute de bailarina e Sara de sereia, a apresentação bem ensaiada, e o som e músicas apreciáveis. Gostei muito de ter ido, mas uma coisa me incomodou. O tema da festa era Peter Pan, e a mestre de cerimônias, que acredito que seja uma das pedagogas da escola, insistia muito na idéia da manutenção da ingenuidade, que devermos sempre nos mantermos crianças, fugindo para a Terra do Nunca pois o mundo fora é perigoso e corrompido.
Discordo frontalmente desta abordagem, e acho que J. M. Barrie, criador da peça original também, não custa lembrar que no final, os garotos perdidos voltam para Londres, Wendy abandona Peter para deixar de ser criança e ter uma vida plena. O menino que não queria crescer é apaixonante, porém em sua candura que acha que um dar um beijo é a troca de um dedal de costura; mimado, interessado apenas em suas brincadeiras; impertinente ao limite, é um ser incompleto, triste. A premissa de Hook - a Volta do Capitão Gancho (Hook, 1991) de Steven Spielberg, onde Pan (Robin Williams) deixa a Terra do Nunca, cresce, tem filhos, e um emprego chato é ótima, pena que mal compreendida. Sim, no final ele reaprende a voar, relembra os jogos de rima, gracejos e divertimentos, mas o que se quer demonstrar é a busca do equilíbrio, foi a urgência adulta de resgatar os filhos, inclusive afetuosamente, que o faz recordar tudo.
Noutro filme, o magnífico Em Busca da Terra do Nunca (Finding Neverland, 2004); que dramatiza o encontro real de Barrie com a família Llewelyn Davies, inspiração para a obra máxima, há uma diálogo-chave do caçula Peter Davies (Freddie Highmore) com o escritor (interpretado por Johnny Depp); aos prantos, mais por raiva do que por tristeza exige saber o quão delicada e grave é a situação. Sem subterfúgios ou condescendência.
Lamentável o lugar-comum que as crianças são incapazes para lidar com os problemas da vida. O que elas não têm é o bagagem intelectual para decupar-los, mas até é bem possível que um adulto também não, todavia o que assimila pode ser tão sofisticado, embora diferente. Sendo a tarefa dos pais e família prepará-las para enfrentar estas adversidades.
Sinal de como estamos falhando nisto é ver como os contos de fadas, quando não ignorados, são deturpados. A causa pode ser atribuída à Walt Disney. Causa não culpa; Disney não se propôs a educar as crianças, mas sim a divertí-las. Gênio buscou o melhor material para trabalhar nas suas criações, e obstinado trabalhou como um louco, quase faliu em várias ocasiões para virar um padrão e um mito. Que pecado cometeu ele se anos mais tarde aparece uma Xuxa...
Infelizmente acabou preponderando a mística do final feliz, todos os vilões punidos, a princesa encontra se valente príncipe. É razoável poupar de detalhes como por exemplo que a rainha má de Branca de Neve come o fígado e pulmões que o caçador lhe traz acreditando ser os da donzela (aliás ela morre dançando em sapatos em brasa); a pequena sereia Ariel se suicida ao ver o casamento de Eric com outra mulher; As irmãs de Cinderela tem os olhos arrancados por pássaros; o Pequeno Polegar tapea um monstro para degolar sete meninas. Há um conto dos Irmãos Grimm chamado "como crianças brincavam de açougueiro umas com as outras". Em muitos aspectos, nos dias de hoje tais informações só tem uma vertente macabra.
(Importante: tais histórias tinham um propósito admonitório claro, e sem firulas, tanto quanto agora o mundo é um lugar extremamente perigoso, o que é diferente é a concepção de infância que só surgiu no século XIX, e até o início do século XX um programa matinal da família poderia ser as execuções públicas de condenados)
O dilema é quando se sacrifica elementos que tornam a trama mais poderosa e rica. Que um conto de fadas pode ser assustador e denso, tal como O Labirinto do Fauno (El Laberinto Del Fauno, 2006). Um triunfo que junta a guerra civil espanhola e o melhor da tradição literária. O sinistro Capitão Vidal (Sergi López) do exército franquista é tão ameaçador quanto o devorador de crianças com olhos nas palmas das mãos.


E espetacular a forma como o diretor, roteirista e produtor Guillermo Del Toro utiliza os símbolos e regras dos contos de fadas. O Fauno (Doug Jones) alerta Ofélia (Ivana Baqueno) que não deve comer nada quando estiver no submundo. É recorrente avisos como esses como nas lendas grega das sementes de romã do Hades dadas a Perséfone, nem sempre o tabu tinha efeitos nefastos, embora sempre arriscados, ainda os gregos falavam das maçãs douradas do jardim Hespérides, os vikings de outras maçãs também douradas cultivadas por Iduna, que davam imortalidade as quem as comesse. Outra o uso da raiz de mandrágora como remédio. Mais uma a própria jornada de Ofélia nas três tarefas dadas pelo Fauno para regressar ao seu reino perdido.
Tudo coroado pelo tocante final, que prefiro não me estender. Basta saber que contra o mal devemos revidar com coragem, bondade e abnegação.
Seu filho não captará todas estas referência, o seu papel é ensinar-las. Boa sorte, ele será uma pessoa melhor, e lhe será eternamente grato por isso.

NOTA:
  • Del Toro tem outro filme que merece atenção, A Espinha do Diabo (El Espinazo del Diablo, 2001), e a série HellBoy. Não possuem a mesma profundidade, mas são diversão garantida.

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